Reflexão sobre o Poder
Era uma mosca azul, asas de ouro e granada,
Filha da China ou do Indostão,
Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada,
Em certa noite de verão.
E zumbia, e voava, e voava e zumbia,
Refulgindo ao clarão do sol
E da lua - melhor do que refulgiria
Um brilhante do Grão-Mongol.
Um poleá que a viu, espantado e tristonho,
Um poleá lhe perguntou:
"Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho,
dize, quem foi que to ensinou?"
Então ela, voando, e revoando, disse:
"Eu sou a vida, eu sou a flor
Das graças, o padrão da eterna meninice,
E mais a glória, e mais o amor."
E ele deixou-se estar a comtemplá-la, mudo,
e tranquilo, como um faquir,
Como alguém que ficou deslembrado de tudo,
Sem comparar, nem refletir.
Entre as asas do inseto, a voltear no espaço,
Uma cousa lhe pareceu
Que surdia, com todo o esplendor de um paço,
E viu um rosto, que era seu.
Era ele, era um rei, era o rei de Cachemira,
Que tinha sobre o colo nu
Um imenso colar de opala, e uma safira
Tirada ao corpo de Vichnu.
Cem mulheres em flor, cem nairas superfinas,
Aos pés dele, no liso chão,
espreguiçam sorrindo as suas graças finas,
e todo o amor que têm lhe dão.
Mudos, graves, de pé, cem etíopes feios,
Com grandes leques de avestruz,
Refrescam-lhes de manso os aromados seios,
Voluptuosamente nus.
Vinha a glória depois - quatorze reis vencidos,
e enfim as páreas triunfais
De trezentas nações, e os parabéns unidos
Das coroas ocidentais.
Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto
Das mulheres e dos varões,
Como em água que deixa o fundo descoberto,
Via limpos os corações.
Então ele estende amão calosa e tosca,
Afeita a só carpintejar,
Com um gesto pegou na fulgurante mosca,
Curioso de a examinar.
Quis vê-la, quis saber a causa do mistério.
E, fechando-a na mão, sorriu
De contente, ao pensar que ali tinha um império,
E para casa se partiu.
Alvoroçado chega, examina, e parece
Que se houve nessa ocupação
Miudamente, como um homem que quisesse
Dissecar a sua ilusão.
Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que dela,
Rota, baça, nojenta, vil,
Sucumbiu; e com isso esvaiu-se-lhe aquela
Visão fantástica e sutil.
Hoje, quando ele aí vai, de aloé e cardamomo
Na cabeça, com ar taful,
Dizem que ensandeceu, e que não sabe como
Perdeu a sua mosca azul.
MACHADO DE ASSIS,
"Ocidentais"
in Poesias Completas, 1901.
Filha da China ou do Indostão,
Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada,
Em certa noite de verão.
E zumbia, e voava, e voava e zumbia,
Refulgindo ao clarão do sol
E da lua - melhor do que refulgiria
Um brilhante do Grão-Mongol.
Um poleá que a viu, espantado e tristonho,
Um poleá lhe perguntou:
"Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho,
dize, quem foi que to ensinou?"
Então ela, voando, e revoando, disse:
"Eu sou a vida, eu sou a flor
Das graças, o padrão da eterna meninice,
E mais a glória, e mais o amor."
E ele deixou-se estar a comtemplá-la, mudo,
e tranquilo, como um faquir,
Como alguém que ficou deslembrado de tudo,
Sem comparar, nem refletir.
Entre as asas do inseto, a voltear no espaço,
Uma cousa lhe pareceu
Que surdia, com todo o esplendor de um paço,
E viu um rosto, que era seu.
Era ele, era um rei, era o rei de Cachemira,
Que tinha sobre o colo nu
Um imenso colar de opala, e uma safira
Tirada ao corpo de Vichnu.
Cem mulheres em flor, cem nairas superfinas,
Aos pés dele, no liso chão,
espreguiçam sorrindo as suas graças finas,
e todo o amor que têm lhe dão.
Mudos, graves, de pé, cem etíopes feios,
Com grandes leques de avestruz,
Refrescam-lhes de manso os aromados seios,
Voluptuosamente nus.
Vinha a glória depois - quatorze reis vencidos,
e enfim as páreas triunfais
De trezentas nações, e os parabéns unidos
Das coroas ocidentais.
Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto
Das mulheres e dos varões,
Como em água que deixa o fundo descoberto,
Via limpos os corações.
Então ele estende amão calosa e tosca,
Afeita a só carpintejar,
Com um gesto pegou na fulgurante mosca,
Curioso de a examinar.
Quis vê-la, quis saber a causa do mistério.
E, fechando-a na mão, sorriu
De contente, ao pensar que ali tinha um império,
E para casa se partiu.
Alvoroçado chega, examina, e parece
Que se houve nessa ocupação
Miudamente, como um homem que quisesse
Dissecar a sua ilusão.
Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que dela,
Rota, baça, nojenta, vil,
Sucumbiu; e com isso esvaiu-se-lhe aquela
Visão fantástica e sutil.
Hoje, quando ele aí vai, de aloé e cardamomo
Na cabeça, com ar taful,
Dizem que ensandeceu, e que não sabe como
Perdeu a sua mosca azul.
MACHADO DE ASSIS,
"Ocidentais"
in Poesias Completas, 1901.
Marcadores: literatura, poder
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