21 junho 2006

Como Nascem as Notícias [parte 1]

Uma das inquietações que me impulsionaram a construir esse espaço foi a possibilidade de compartilhar informações. A comunicação é central na manutenção e/ou disputa da sociedade e o presente artigo retrata a "produção de notícias" no Brasil.

COMO NASCEM AS NOTÍCIAS
O dia-a-dia de um “gerenciador de crises”
Por Marina Amaral

Bairro de elite de uma grande cidade brasileira. convite para almoço. O apartamento, decorado com obras de arte verdadeiras, é sofisticado e aconchegante, com a mesa farta a cargo da cozinheira com muitos anos de casa. A conversa não fica atrás: o assunto é política, temperada com sexo, dinheiro, negócios escusos, traição. Basta lançar o nome de um rico ou poderoso no ar e a ficha vem no ato:"Fulano? Esse começou a vida em tal lugar etc. e tal".

Nosso homem respira e transpira informação. "Tudo em off", ele avisa no começo da conversa, condição de sobrevivência para o tipo de trabalho que faz. Sua especialidade: "Gerenciador de crises, assessor de imprensa, lobista", diz, o que na prática significa produzir notícias do interesse de seus clientes, políticos e empresários (às vezes representados por escritórios de advocacia ou agências de publicidade) que buscam projeção ou reversão de prejuízos causados por denúncias na mídia.

Ele explica que a função do lobista que atua na mídia é influenciar jornalistas à imagem e semelhança dos lobistas contratados pra trabalhar no Congresso, esses com a missão de "sensibilizar" parlamentares. Também há pontos comuns entre o seu trabalho e o do assessor de imprensa convencional, a principal diferença está no modo como atua: em vez de mandar releases e disparar telefonemas burocráticos, o lobista da comunicação se converte em "fonte" dos jornalistas, oferecendo notícias, dando a "ficha" de personalidades emergentes na imprensa, repassando as últimas sobre o assunto em voga. A reputação de homem bem-informado que sempre tem algo a oferecer aos jornalistas é a alma do negócio.

"Toda fonte é lobista e todo lobby envolve dinheiro", afirma, referindo-se aos que, como ele, são consultados diariamente pelos jornalistas e colunistas em busca de novidade. "A fonte passa informações porque é a melhor maneira de interferir nas notícias, esteja ela a serviço dos interesses de seus clientes ou de seus próprios negócios. Os maiores lobistas são os políticos. Os senadores Jorge Bornhausen e Antônio Carlos Magalhães, por exemplo, que estão entre as grandes fontes dos jornalistas políticos brasileiros, têm interesses empresariais, não apenas políticos. O Bornhausen é lobista da Febraban, o ACM defende suas empreiteiras, suas construtoras."

“E os jornalistas confiam no que eles dizem?” Ele dá sua explicação: “A informação é a meda de troca com o jornalista. A fonte não pode mentir nem passar notícias não comprovadas sem deixar claro que não tem certeza do que está dizendo, e o jornalista jamais pode revelar a fonte. É uma relação de confiança mútua. Há coisas que não há como checar, uma pista falsa pode atrasar muito uma matéria, têm de confiar e pronto. E eles conhecem o interesse das fontes, publicam também os assuntos que sugerimos. Mas não há nada de errado nisso, pois as fontes com credibilidade passam informações verdadeiras e que realmente são notícia. O lobista, como o jornalista, tem a vertigem da notícia.”.”Sempre é assim?”, insisto. Ele responde: “Todo jornalista um dia vai ouvir da fonte: ‘Eu preciso que você me faça um favor’. Isso significa que a fonte precisa “plantar” uma nota, que pode ser uma meia-verdade ou quase uma inverdade, e ai cabe ao jornalista decidir o que faz”.

A maioria dos lobistas trabalha em parceria com as colunas de política de Brasília, de gente como o ex-secretário de Comunicação de Collor, o jornalista Cláudio Humberto, ou os ex-publicitários como Ucho Haddad e Giba Um. Aqueles que têm maior “sintonia” com a fonte recebem de presente as notas mais quentes, aquelas que antecipam escândalos e dão peso às colunas, que atuam na fronteira entre o boato e a informação. Algumas são escritas em linguagem cifrada com o objetivo de “avisar” políticos e empresários de que tem gente na “cola” deles, o que quase sempre significa emprego para mais um lobista, encarregado de “desaparecer” com a informação antes que ela ganhe as colunas políticas e sociais dos jornais de maior credibilidade.

“Eu leio jornal e sei direitinho quem está trabalhando pra quem, quem está ‘plantando’ contra quem. Um dos piores erros do PT foi a plantação de notícias de um dirigente contra o outro, abriram o flanco pra mídia, acreditaram que tinham na mão gente que eles não controlam de fato”, diz nosso homem, que inclui a Internet entre suas ferramentas de trabalho. Todos os dias, ele envia e-mails com informações que favorecem seus clientes a 90.000 endereços usando remetentes frios e provedores de fora do Brasil. “E isso funciona?” “Faz um barulho danado”, ele responde, explicando que compensa a falta de credibilidade do anonimato postando apenas “as matérias que já consegui publicar em veículos respeitados”.

Enquanto conversamos o celular toca sem parar. Colunistas políticos, repórteres da grande imprensa, clientes ou amigos interessados no desenrolar do escândalo do “mensalão” são recebidos com a piada sobre os três ternos que o vice Alencar mandou fazer (um preto, para o caso de suicídio do presidente, um azul-marinho para a posse, e um cinza, para o primeiro dia de trabalho). Aos colunistas, ele passa notas quase prontas; aos repórteres dos jornais e dos semanais indica fontes dispostas a botar lenha na fogueira – a amante de fulano, a secretária de sicrano, a ex-mulher de beltrano. Também dá dicas de histórias que, garante, valem uma checagem: a sugestão do dia é investigar uma empresa de informática que o filho do presidente abriu no Brás, assunto que apareceria na mídia três semanas depois. Aos clientes, alguns de capitais distantes, reserva a análise de conjuntura antecipada pela piada dos ternos de Alencar: “Sim, o presidente Lula vai cair”. Seguida da explicação: “CPI é que nem suruba, depois que começa, ninguém controla”.

Se depender dele, a suruba continua. Para quem vive de informação, como bem sabem os donos das empresas de comunicação, escândalos e campanhas eleitorais são os grandes momentos de ganhar dinheiro tento pelo que se divulga como pelo que se deixa de divulgar. Também é um ambiente favorável para abafar outros escândalos e revelar pecadilhos como a sonegação de impostos, concorrência desleal, e outros tormentos jurídicos. “E como o lobista se informa?”, pergunto, perplexa com a quantidade de notícias que ele tira da cartola a cada telefonema.

“Depende do meio que ele circula”, explica. “Eu trabalho principalmente com meu círculo de amigos. Entrei na política com 18 anos, fui assessor parlamentar, secretário de prefeito, fiz muitas campanhas eleitorais.Você tem idéia de quantos dossiês circulam em uma campanha eleitoral? Então, as eleições passam e os dossiês ficam, a gente acaba sabendo de tudo. Também fui assessor de imprensa e lobista de grandes empresas, venho acumulando informações a décadas. Conheço todo mundo que interessa, circulo nos lugares certos, levanto a ficha de qualquer um na hora em que quiser. Sei exatamente pra quem ligar conforme o caso”, diz, sem esconder o orgulho profissional.

E nesse caso? Ele acredita na corrupção do PT? “Todo governo é corrupto, não há como ganhar eleições sem caixa dois e quem está no governo faz o caixa no governo, com o dinheiro público que escoa por três ralos: obras públicas, propaganda e informática. As empreiteiras tiveram seu auge no governo militar, perderam com as privatizações e a redução de obras nos últimos anos, e entraram no ramo dos serviços públicos, daí os escândalos nos contratos de lixo, por exemplo, de tantas prefeituras. Mas agora o grosso do caixa dois dos partidos vem dos contratos de publicidade – esse Marcos Valério, por exemplo, operava para os tucanos mineiros desde 1997. A informática é o filão mais recente de grandes contratos públicos e está se tornando um grande fornecedor de caixa. O PT aderiu ao esquema dos contratos de publicidade superfaturados, das propinas nas estatais, de conseguir dinheiro nos bancos investindo naqueles que colaboram com o partido a bolada dos fundos de pensão”, opina.

Mas uma ligação, mas dessa vez o homem não passa informação, recebe. A fonte é o repórter de uma revista semanal envolvido com uma polêmica entrevista com aquela que seria apresentada como testemunha-chave da CPI dos Correios. No próximo telefonema, a informação recebida segue seu caminho, repassada a outro jornalista: “Sim, a ‘testemunha’ vai confirmar, não tem outro jeito, as três fitas gravadas com as entrevistas estão no cofre da editora há nove meses, se o repórter for convocado a depor, as fitas serão entregues aos membros da CPI”.

O que pode parecer um vazamento de informação é na verdade prestação de serviço para dois amigos: o que fez a entrevista – cuja autenticidade vinha sendo questionada pelo longo tempo em que ficou “na gaveta” e por ter sido desmentida anteriormente pela entrevistada – e o que recebeu a notícia, aparentemente em primeira mão. Pergunto quanto do seu trabalho é pago, já que perde tanto tempo fazendo favores a amigos. “Noventa por cento”, revela para em seguida corrigir, com humor: “Agora, o percentual caiu, porque não estou ganhando nada para ajudar a derrubar o governo, é trabalho voluntário”.

[continua na parte 2]

Matéria publicada na Revista Caros Amigos – Edição Especial “Corrupção. Somo todos desonestos?” de setembro de 2005.
Marina Amaral é jornalista.

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