30 dezembro 2006

Oração

"Mas ela não esqueceu
Lavava o rosto devagar, penteava-se devagar, já de camisola para dormir. Adiava, adiava. Escovou mais uma vez os dentes. Sua testa estava franzida, sua alma trêmula. Ela sabia que ia tentar rezar e assustava-se. Como se o que fosse pedir a si mesma e ao Deus precisasse de muito cuidado: porque o que pedisse, nisso seria atendida Foi à geladeira, bebeu um copo de água: agia como se tivesse sido hipnotizada por Ulisses. E ainda um ínfimo movimento de revolta contra o hipnotismo a que parecia ter sido sujeita fazia-a adiar o que viesse.
Pedir? Como é o que se pede? E o que se pede?
Pede-se vida?
Pede-se vida.
Mas já não está tendo vida?
Existe uma mais real.
O que é real?
E ela não sabia como responder. Às cegas teria que pedir. Mas ela queria que, se fosse às cegas, pelo menos entendesse o que pedisse. Ela sabia que não deveria pedir o impossível: a resposta não se pede. A grande resposta não nos era dada. É perigoso mexer com a grande resposta. Ela preferia pedir humildade, e não à sua altura qe era enorme: Lóri sentia que era um enorme ser humano. E que deveria tomar cuidado. Ou não devia? A vida inteira tomara cuidado em não ser grande dentro de si para não ter dor.
Não, não devia pedir mais vida. Por enquanto era perigoso. Ajoelhou-se trêmula junto da cama pois era assim que se rezava e disse baixo, severo, triste, gaguejando sua prece com um pouco de pudor: alivia minha alma, faze com que eu sinta que Tua mão está dada à minha, faze com que eu sinta que a morte não existe porque na verdade já estamos na eternidade, faze com que eu sinta que amar não é morrer, que a entrega de si mesmo não significa a morte, faze com que eu sinta uma alegria modesta e diária, faze com que eu não Te indague demais, porque a resposta seria tão misteriosa quanto a pergunta, faze com que eu me lembre que também não há explicação porque um filho quer o beijo de sua mãe e no entanto ele quer e no entanto o beijo é perfeito, faze com que eu receba o mundo sem receio, pois para esse mundo incompreensível eu fui criada e eu mesma incompreensível, então é que há uma conexão entre esse mistério do mundo e o nosso, mas essa conexão não é clara para nós enquanto quisermos entende-la, abençoa-me para que eu viva com alegria o pão que eu como, o sono que eu durmo, faze com que eu tenha caridade por mim mesma pois senão não poderei sentir que Deus me amou, faze com que eu perca o pudor de desejar que na hora de minha morte haja uma mão humana amada para apertar a minha, amém.
Não era à toa que ela entendia os que buscavam caminho. Como buscava arduamente o seu! E como hoje buscava com sofreguidão e aspereza o seu melhor modo de ser, o seu atalho, já que não ousava mais falar em caminho. Agarrava-se ferozmente à procura de um modo de andar, de um passo certo. Mas o atalho com sombras refrescantes e reflexo de luz entre as árvores, o atalho onde ela fosse finalmente ela, isso só em certo momento indeterminado da prece ela sentira. Mas também sabia de uma coisa: quando estivesse mais pronta, passaria de si para os outros, o seu caminho era os outros. Quando pudesse sentir plenamente o outro estaria salvo e pensaria: eis o meu porto de chegada.
Mas antes precisaria tocar em si própria, antes precisava tocar o mundo.
*Trecho de Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres de Clarice Lispector.
Grifo da Blogger

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