27 agosto 2006

Ambulancioterapia

Mas por que, mesmo, ambulâncias?
por Moacyr Scliar

A existência de uma máfia das ambulâncias foi o ponto de partida para uma investigação exemplar, que acabou indiciando dezenas de parlamentares. Mas, curiosamente, neste tempo todo uma pergunta não chegou a ser formulada: por que ambulâncias? A resposta vai nos conduzir a uma prática que, ao longo dos anos, tem recebido escassa atenção do público e dos governantes: a ambulancioterapia. O termo em si já é curioso. A medicina conhece a psicoterapia, a quimioterapia, a fisioterapia; a ambulancioterapia é uma invenção brasileira, que consiste em enviar pacientes para atendimento em centros maiores.

Aparentemente é uma providência normal: afinal, se não existem recursos locais para tratar uma pessoa, o lógico é recorrer a quem tem esses recursos. O problema, em primeiro lugar, é a quantidade de pacientes enviados. Para dar alguns exemplos: do Vale do Taquari são enviados, a Porto Alegre, 250 pacientes por dia. Em Pelotas, quase metade dos leitos disponibilizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) são ocupados por pessoas de fora da cidade. Esses encaminhamentos refletem as deficiências dos locais de origem. Cerca de 70% dos óbitos maternos que ocorrem nos hospitais públicos de Natal, RN, vitimam mulheres vindas do interior do Estado. Por quê? Porque estas mulheres não receberam a devida atenção pré-natal, o que é uma coisa básica em qualquer posto de saúde. Mas, ao invés de melhorar os serviços, os pacientes são mandados para as grandes cidades. É mais fácil, mais barato. O paciente fica "devendo um favor", favor este que será cobrado na próxima eleição. E, mais, uma ambulância circulando pela cidade, com letreiros alusivos, sempre serve de propaganda. Por último, mas não menos importante, a compra dos veículos, como se constatou, pode mascarar uma negociata. Para a qual sempre existe a desculpa de que se tratava de medida para ajudar doentes.

Seria muito bom se se aproveitasse a atual investigação para examinar a fundo a questão da ambulancioterapia. Que é perfeitamente solúvel. Em Santa Catarina, por exemplo, foi criada a Central de Regulação e Telemedicina, para equacionar a questão dos exames de média e alta complexidade, fazendo o encaminhamento, marcando-os via Internet. De outra parte, o fim da ambulancioterapia estimulará o desenvolvimento de serviços locais. Aí está o PSF, o Programa de Saúde da Família, para mostrar que isto é possível. Ambulâncias são necessárias, sim. Mas na dose certa. Os exageros da ambulancioterapia podem ter conseqüências inesperadas, para dizer o mínimo.