27 agosto 2006

Um acontecimento histórico

por Boaventura de Sousa Santos

Freqüentemente, os acontecimentos históricos só são reconhecidos como tal muitos anos ou séculos depois. No tempo em que ocorrem, passam despercebidos porque o seu significado escapa aos critérios e interesses que definem a atualidade noticiosa. Enquanto esta se pauta pela realidade dominante e pelos significados constituídos, os acontecimentos históricos rompem com essa realidade e são portadores de significados emergentes, constituintes, destinados a fazer história em vez de a reproduzir.

Acabo de ter o privilégio de participar de um desses acontecimentos. Teve lugar entre 15 e 17 de Julho na cidade de Cusco, Peru, antiga capital do Império Inca, o umbigo do mundo, como lhe chamavam os Incas, a 3500 metros de altitude na Cordilheira dos Andes. Tratou-se do congresso fundacional da Coordenadora Andina das Organizações Indígenas do Peru, Equador, Bolívia, Chile, Colômbia e Argentina. A conquista espanhola do final do século XV, além de dizimar os povos que habitavam estes territórios, destruir as suas cidades, monumentos, lugares sagrados e reprimir as suas culturas, usos e costumes, teve por efeito retalhar e separar as populações que restaram em unidades políticas diferentes que mais tarde, no século XIX, se transformaram nos diferentes países latino-americanos.

Os povos indígenas originários da região andina, quechuas, aymaras, mapuches e tantos outros, passaram a ser peruanos, bolivianos, equatorianos, chilenos, colombianos. O mesmo aconteceu com os povos da bacia amazônica e do resto da América do Sul e Central. As novas identidades nacionais nada tinham a ver com as identidades étnicas e culturais, uma situação muito semelhante à que viria a verificar-se depois em África. De todo o modo, as lutas de resistência dos povos indígenas contra a ocupação dos seus territórios, a pilhagem dos seus recursos e a supressão das suas culturas passaram a ter por marco de referência o Estado. A reivindicação principal sempre foi a de que os Estados ditos nacionais se deveriam reconhecer como plurinacionais, já que a única nação reconhecida como tal – a dos brancos e mestiços descendentes dos colonos – se alimentava da opressão colonial das diferentes nacionalidades originárias existentes no território. Aliás, esta opressão continuou depois da independência; até hoje, razão porque, para os povos indígenas, o colonialismos ainda não terminou.

No último quartel do século passado os movimentos indígenas lograram alguns êxitos assinaláveis: as constituições de vários Estados passaram a reconhecer a plurinacionalidade e a interculturalidade e, em conseqüência, vários direitos coletivos dos povos indígenas (auto-governo dos seus territórios; direito indígena; línguas e culturas indígenas). Foram, no entanto, em grande medida, vitórias aparentes, pois coincidiram com a investida do neoliberalismo no continente. Ou seja, no momento em que se criaram as condições para uma verdadeira coesão nacional, iniciou-se um violento e avassalador processo de desnacionalização dos Estados e das economias: liberalização do comércio, privatização, desregulação e cortes nas políticas sociais foram os nomes de guerra da (des)ordem neoliberal imposta pelos programas de ajustamento estrutural e, mais tarde, negociada, com a mão de ferro da diplomacia norte-americana, no âmbito dos tratados de livre comércio.

Com a nova política, os territórios indígenas e os seus recursos – o petróleo, a água, a biodiversidade, o gás natural, a madeira – ficaram à mercê das empresas multinacionais, operando simultaneamente em vários países. Tornou-se, então, evidente que uma nova versão do colonialismo estava em marcha, um colonialismo transnacional e conduzido por agentes econômicos muito poderosos com a conivência de Estados cúmplices e fracos ou enfraquecidos. Perante forças transnacionais, as lutas nacionais estariam votadas ao fracasso. Tornou-se, pois, imperiosa a necessidade de articular a resistência e propor alternativas a nível igualmente transnacional, uma necessidade que o Fórum Social Mundial veio sublinhar.

Foi então que os povos indígenas redescobriram o seu carácter transnacional originário – o serem quechuas ou aymaras antes de serem peruanos ou bolivianos – e resolveram pô-lo ao serviço da constituição de um novo sujeito e de uma nova acção política internacional plasmados numa agenda política andina a ser prosseguida, tanto nas instâncias internacionais, como em cada um dos Estados andinos. 514 anos depois da conquista, os povos indígenas andinos reassumiram o que eram antes de as fronteiras nacionais os terem retalhado. Como dizia o líder equatoriano, Humberto Cholango, “com a Coordenadora Andina o condor [a ave sagrada dos Incas] pode voltar a voar”.

Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).

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