25 agosto 2006

ESPECIAL - Conferência da Clacso - 2

Crise da democracia pede soluções "latinas" e estruturais
por Maurício Hashizume - Carta Maior

RIO DE JANEIRO – O remédio para o esvaziamento de conteúdo da democracia liberal na América Latina e no Caribe é composto por substâncias e formulações caseiras que despontam no próprio continente. Quem assina a receita médica é o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, da Universidade de Coimbra. Mesmo com todos os vícios e limites, os povos latino-americanos têm logrado fazer um “uso contra-hegemônico de uma democracia hegemônica”, aumentando o grau de intensidade das democracias e, em certa medida, transformando os problemáticos processos representativos em solução.

A reivindicação de ser igual mantendo as diferenças e o impulso à questão da interculturalidade não está em nenhum clássico europeu. Exemplos disso, segundo Sousa Santos, são a formação da Coordenadora Andina das Organizações Indígenas do Peru, Equador, Bolívia, Chile, Colômbia e Argentina, que une povos das etnias Aymara, Kichwas, Quéchua e Mapuche e outros. Povos, aliás, originariamente transnacionais que foram cindidos pela colonização. Outros episódios recentes de grandes mobilizações populares foram as mobilizações no Equador contra o Tratado de Livre Comércio (TLC) com os EUA e a presença da transnacional exploradora de petróleo Occidental (Oxy), sem contar as vitórias eleitorais na Bolívia, com Evo Morales e as iniciativas populares que mantiveram Hugo Chávez como presidente da Venezuela. Algumas dessas erupções são quase invisíveis e não fazem parte da gramática dos “mausoléus da esquerda européia”.

“A América Latina é hoje o centro da resistência do capitalismo global”, disparou Sousa Santos para um auditório repleto da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) durante seminário sobre a reinvenção da democracia na IV Conferência Latino-Americana de Ciências Sociais. Nesse contexto, ele apontou a relevância da articulação entre capitalismo e colonialismo. Basta notar que os países do centro – que chegaram a supor que a brutalidade do sistema só desabaria sobre os outros - estão preocupados com duas ameaças hoje: o imigrante e o terrorista. O último 1º de maio nos EUA foi sintomático, com massivas manifestações de rua de imigrantes de uma determinada classe social defendendo as suas próprias identidades latinas.

O protagonismo dos povos da região deve, portanto, “mostrar os limites dessa democracia liberal”, nas palavras do sociólogo, funcionando como água no moinhopara gerar cada vez mais tensão. “Na prática, a democracia liberal é inviável. A igualdade jurídica e política em que se assenta não faz sentido”. Somada ao aumento brutal da desigualdade (“ilhas de igualdade num oceano de despotismo”), a falência da democracia liberal é uma decorrência do próprio liberalismo econômico. Como projetos políticos e ideologias não tem preço – e só o que tem preço tem valor – o ritual democrático perdeu prestígio na sociedade.

Mesmo com todo esse entusiasmo, Sousa Santos se define como um “otimista trágico”. Explica-se: para ele, os povos indígenas do continente serão os novos alvos do imperialismo. Existe uma estreita relação econômica e geopolítica direta entre os recursos naturais (água, madeira, petróleo) – a ancestral Pacha Mama dos indígenas – com a estratégia de “segurança nacional e combate ao terrorismo” dos Estados Unidos. Muitos líderes no Peru e no Chile, conta o prestigiado intelectual, foram incriminados como terroristas por ter fechado estradas em seus respectivos territórios. O processo de militarização da Amazônia também sustenta essa trágica previsão.

Definição geopolítica
A proposta de um novo conceito para a democracia foi apresentada por Luiz Tapia, da Universidade de San Andres, em La Paz (Bolívia), durante o mesmo seminário. Primeiro, ele sublinha que a forma de organização popular tradicional na América Latina nunca se deu em partidos políticos e defende a adoção de formas mais originais de autogoverno. Em segundo lugar, o acadêmico contesta a contradição existente nesse formato único de organização de origem anglo-saxã em que a democracia interna convive naturalmente com o imperialismo internacional. “Quem utiliza a violência contra os outros países não é democrático”, defende.

Hoje, segundo ele, a democracia é definida mais por um método que “define o todo pela parte”: direito de ser eleito, direito a voto, acesso a fontes diversas de informação, condição de exercer o poder, etc. “Democracia não é só para governar, mas para atacar a desigualdade”. A igualdade viria justamente da prática do co-governo institucional, em formas organizativas com base na pluralidade.

Tapia propõe uma relação de intergovernabilidade baseado na condição de igualdade com outros governos que se autogovernam para caracterizar a democracia, em substituição a qualquer outra relação de viés autoritário. Para ele, órgãos como a Organização das Nações Unidas (ONU) e Organização dos Estados Americanos (OEA) são formas de intergovernabilidade que reforçam a relação de dominação entre os povos.

Democracia e capitalismo
“O capitalismo é inexoravelmente antidemocrático”, avaliou Atilio Boron, secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso). O verdadeiro apartheid social quer resulta do capitalismo está esvaziando a democracia, que nada mais é que um reflexo histórico do estágio de pilhagem em que vivemos. “Como nossos povos podem desfrutar da liberdade da ordem democrática se muitas vezes não tem sequer dinheiro para pagar o transporte para procurar trabalho”. Ele defende transformações profundas para transformas as “plutocracias e oligarquias” continuam a vigorar.

Para sustentar sua tese, Boron citou pesquisa com líderes políticos (autoridades em postos estratégicos) que revelou que 80% deles apontam os grandes empresários e o setor financeiro como os verdadeiros donos do poder. Em segundo lugar na escala de preponderância em decisões, vieram os meios de comunicação.

A reinvenção da democracia, para a historiadora Virgínia Fontes, da Universidade Federal Fluminense (UFF), também está vinculada com a reprodução do capital. Ela desenvolve uma linha de pesquisa que questiona a noção de fim do trabalho, sustenta a efetividade do Estado (para o funcionamento do esquema) e identifica o imperialismo não apenas na relação entre os países, mas também está nas relações classistas internas. “Não tem lado de fora na exploração capitalista”, argumenta. O processo de independência e formação dos Estados nacionais definiu uma forma de representação política “colonial-nativista”, salientou Virgínia durante o mesmo seminário. O sufrágio universal, como pontuara o historiador Eric Hobsbawn, também domesticou a capacidade subversiva e forjou cidadãos do mundo (livres de amarras, valores e identidades). Essas novas formas organizativas cristalizaram a relação subalterna sem que seja necessário que o explorado esteja no mesmo espaço do explorador. O Estado assumiu o papel de garantidor internacional dos direitos do capitalismo neoliberal ao sustentar mecanismos de filantropia/coerção e descartar a inclusão por meio do trabalho, principal forma de igualdade e democratização.

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