27 agosto 2006

Direitos dos Pacientes com Câncer

O Instituto Nacional de Câncer (INCA) é uma instituição com excelentes serviços prestados aos cidadãos brasileiros na atenção ao paciente com câncer, formação de profissionais de saúde, desenvolvimento consolidação das pesquisas em oncologia, e contribuição para a estruturação das políticas de saúde específicas na área.

Em seu sítio - http://www.inca.gov.br - dentre outros conteúdos (sempre atualizados) disponibiliza uma cartilha sobre o direito dos pacientes com câncer.

Vale a pena conferir e divulgar!

Marcadores:

Ambulancioterapia

Mas por que, mesmo, ambulâncias?
por Moacyr Scliar

A existência de uma máfia das ambulâncias foi o ponto de partida para uma investigação exemplar, que acabou indiciando dezenas de parlamentares. Mas, curiosamente, neste tempo todo uma pergunta não chegou a ser formulada: por que ambulâncias? A resposta vai nos conduzir a uma prática que, ao longo dos anos, tem recebido escassa atenção do público e dos governantes: a ambulancioterapia. O termo em si já é curioso. A medicina conhece a psicoterapia, a quimioterapia, a fisioterapia; a ambulancioterapia é uma invenção brasileira, que consiste em enviar pacientes para atendimento em centros maiores.

Aparentemente é uma providência normal: afinal, se não existem recursos locais para tratar uma pessoa, o lógico é recorrer a quem tem esses recursos. O problema, em primeiro lugar, é a quantidade de pacientes enviados. Para dar alguns exemplos: do Vale do Taquari são enviados, a Porto Alegre, 250 pacientes por dia. Em Pelotas, quase metade dos leitos disponibilizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) são ocupados por pessoas de fora da cidade. Esses encaminhamentos refletem as deficiências dos locais de origem. Cerca de 70% dos óbitos maternos que ocorrem nos hospitais públicos de Natal, RN, vitimam mulheres vindas do interior do Estado. Por quê? Porque estas mulheres não receberam a devida atenção pré-natal, o que é uma coisa básica em qualquer posto de saúde. Mas, ao invés de melhorar os serviços, os pacientes são mandados para as grandes cidades. É mais fácil, mais barato. O paciente fica "devendo um favor", favor este que será cobrado na próxima eleição. E, mais, uma ambulância circulando pela cidade, com letreiros alusivos, sempre serve de propaganda. Por último, mas não menos importante, a compra dos veículos, como se constatou, pode mascarar uma negociata. Para a qual sempre existe a desculpa de que se tratava de medida para ajudar doentes.

Seria muito bom se se aproveitasse a atual investigação para examinar a fundo a questão da ambulancioterapia. Que é perfeitamente solúvel. Em Santa Catarina, por exemplo, foi criada a Central de Regulação e Telemedicina, para equacionar a questão dos exames de média e alta complexidade, fazendo o encaminhamento, marcando-os via Internet. De outra parte, o fim da ambulancioterapia estimulará o desenvolvimento de serviços locais. Aí está o PSF, o Programa de Saúde da Família, para mostrar que isto é possível. Ambulâncias são necessárias, sim. Mas na dose certa. Os exageros da ambulancioterapia podem ter conseqüências inesperadas, para dizer o mínimo.

Um acontecimento histórico

por Boaventura de Sousa Santos

Freqüentemente, os acontecimentos históricos só são reconhecidos como tal muitos anos ou séculos depois. No tempo em que ocorrem, passam despercebidos porque o seu significado escapa aos critérios e interesses que definem a atualidade noticiosa. Enquanto esta se pauta pela realidade dominante e pelos significados constituídos, os acontecimentos históricos rompem com essa realidade e são portadores de significados emergentes, constituintes, destinados a fazer história em vez de a reproduzir.

Acabo de ter o privilégio de participar de um desses acontecimentos. Teve lugar entre 15 e 17 de Julho na cidade de Cusco, Peru, antiga capital do Império Inca, o umbigo do mundo, como lhe chamavam os Incas, a 3500 metros de altitude na Cordilheira dos Andes. Tratou-se do congresso fundacional da Coordenadora Andina das Organizações Indígenas do Peru, Equador, Bolívia, Chile, Colômbia e Argentina. A conquista espanhola do final do século XV, além de dizimar os povos que habitavam estes territórios, destruir as suas cidades, monumentos, lugares sagrados e reprimir as suas culturas, usos e costumes, teve por efeito retalhar e separar as populações que restaram em unidades políticas diferentes que mais tarde, no século XIX, se transformaram nos diferentes países latino-americanos.

Os povos indígenas originários da região andina, quechuas, aymaras, mapuches e tantos outros, passaram a ser peruanos, bolivianos, equatorianos, chilenos, colombianos. O mesmo aconteceu com os povos da bacia amazônica e do resto da América do Sul e Central. As novas identidades nacionais nada tinham a ver com as identidades étnicas e culturais, uma situação muito semelhante à que viria a verificar-se depois em África. De todo o modo, as lutas de resistência dos povos indígenas contra a ocupação dos seus territórios, a pilhagem dos seus recursos e a supressão das suas culturas passaram a ter por marco de referência o Estado. A reivindicação principal sempre foi a de que os Estados ditos nacionais se deveriam reconhecer como plurinacionais, já que a única nação reconhecida como tal – a dos brancos e mestiços descendentes dos colonos – se alimentava da opressão colonial das diferentes nacionalidades originárias existentes no território. Aliás, esta opressão continuou depois da independência; até hoje, razão porque, para os povos indígenas, o colonialismos ainda não terminou.

No último quartel do século passado os movimentos indígenas lograram alguns êxitos assinaláveis: as constituições de vários Estados passaram a reconhecer a plurinacionalidade e a interculturalidade e, em conseqüência, vários direitos coletivos dos povos indígenas (auto-governo dos seus territórios; direito indígena; línguas e culturas indígenas). Foram, no entanto, em grande medida, vitórias aparentes, pois coincidiram com a investida do neoliberalismo no continente. Ou seja, no momento em que se criaram as condições para uma verdadeira coesão nacional, iniciou-se um violento e avassalador processo de desnacionalização dos Estados e das economias: liberalização do comércio, privatização, desregulação e cortes nas políticas sociais foram os nomes de guerra da (des)ordem neoliberal imposta pelos programas de ajustamento estrutural e, mais tarde, negociada, com a mão de ferro da diplomacia norte-americana, no âmbito dos tratados de livre comércio.

Com a nova política, os territórios indígenas e os seus recursos – o petróleo, a água, a biodiversidade, o gás natural, a madeira – ficaram à mercê das empresas multinacionais, operando simultaneamente em vários países. Tornou-se, então, evidente que uma nova versão do colonialismo estava em marcha, um colonialismo transnacional e conduzido por agentes econômicos muito poderosos com a conivência de Estados cúmplices e fracos ou enfraquecidos. Perante forças transnacionais, as lutas nacionais estariam votadas ao fracasso. Tornou-se, pois, imperiosa a necessidade de articular a resistência e propor alternativas a nível igualmente transnacional, uma necessidade que o Fórum Social Mundial veio sublinhar.

Foi então que os povos indígenas redescobriram o seu carácter transnacional originário – o serem quechuas ou aymaras antes de serem peruanos ou bolivianos – e resolveram pô-lo ao serviço da constituição de um novo sujeito e de uma nova acção política internacional plasmados numa agenda política andina a ser prosseguida, tanto nas instâncias internacionais, como em cada um dos Estados andinos. 514 anos depois da conquista, os povos indígenas andinos reassumiram o que eram antes de as fronteiras nacionais os terem retalhado. Como dizia o líder equatoriano, Humberto Cholango, “com a Coordenadora Andina o condor [a ave sagrada dos Incas] pode voltar a voar”.

Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).

Marcadores: ,

25 agosto 2006

ESPECIAL - Conferência da Clacso - 2

Crise da democracia pede soluções "latinas" e estruturais
por Maurício Hashizume - Carta Maior

RIO DE JANEIRO – O remédio para o esvaziamento de conteúdo da democracia liberal na América Latina e no Caribe é composto por substâncias e formulações caseiras que despontam no próprio continente. Quem assina a receita médica é o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, da Universidade de Coimbra. Mesmo com todos os vícios e limites, os povos latino-americanos têm logrado fazer um “uso contra-hegemônico de uma democracia hegemônica”, aumentando o grau de intensidade das democracias e, em certa medida, transformando os problemáticos processos representativos em solução.

A reivindicação de ser igual mantendo as diferenças e o impulso à questão da interculturalidade não está em nenhum clássico europeu. Exemplos disso, segundo Sousa Santos, são a formação da Coordenadora Andina das Organizações Indígenas do Peru, Equador, Bolívia, Chile, Colômbia e Argentina, que une povos das etnias Aymara, Kichwas, Quéchua e Mapuche e outros. Povos, aliás, originariamente transnacionais que foram cindidos pela colonização. Outros episódios recentes de grandes mobilizações populares foram as mobilizações no Equador contra o Tratado de Livre Comércio (TLC) com os EUA e a presença da transnacional exploradora de petróleo Occidental (Oxy), sem contar as vitórias eleitorais na Bolívia, com Evo Morales e as iniciativas populares que mantiveram Hugo Chávez como presidente da Venezuela. Algumas dessas erupções são quase invisíveis e não fazem parte da gramática dos “mausoléus da esquerda européia”.

“A América Latina é hoje o centro da resistência do capitalismo global”, disparou Sousa Santos para um auditório repleto da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) durante seminário sobre a reinvenção da democracia na IV Conferência Latino-Americana de Ciências Sociais. Nesse contexto, ele apontou a relevância da articulação entre capitalismo e colonialismo. Basta notar que os países do centro – que chegaram a supor que a brutalidade do sistema só desabaria sobre os outros - estão preocupados com duas ameaças hoje: o imigrante e o terrorista. O último 1º de maio nos EUA foi sintomático, com massivas manifestações de rua de imigrantes de uma determinada classe social defendendo as suas próprias identidades latinas.

O protagonismo dos povos da região deve, portanto, “mostrar os limites dessa democracia liberal”, nas palavras do sociólogo, funcionando como água no moinhopara gerar cada vez mais tensão. “Na prática, a democracia liberal é inviável. A igualdade jurídica e política em que se assenta não faz sentido”. Somada ao aumento brutal da desigualdade (“ilhas de igualdade num oceano de despotismo”), a falência da democracia liberal é uma decorrência do próprio liberalismo econômico. Como projetos políticos e ideologias não tem preço – e só o que tem preço tem valor – o ritual democrático perdeu prestígio na sociedade.

Mesmo com todo esse entusiasmo, Sousa Santos se define como um “otimista trágico”. Explica-se: para ele, os povos indígenas do continente serão os novos alvos do imperialismo. Existe uma estreita relação econômica e geopolítica direta entre os recursos naturais (água, madeira, petróleo) – a ancestral Pacha Mama dos indígenas – com a estratégia de “segurança nacional e combate ao terrorismo” dos Estados Unidos. Muitos líderes no Peru e no Chile, conta o prestigiado intelectual, foram incriminados como terroristas por ter fechado estradas em seus respectivos territórios. O processo de militarização da Amazônia também sustenta essa trágica previsão.

Definição geopolítica
A proposta de um novo conceito para a democracia foi apresentada por Luiz Tapia, da Universidade de San Andres, em La Paz (Bolívia), durante o mesmo seminário. Primeiro, ele sublinha que a forma de organização popular tradicional na América Latina nunca se deu em partidos políticos e defende a adoção de formas mais originais de autogoverno. Em segundo lugar, o acadêmico contesta a contradição existente nesse formato único de organização de origem anglo-saxã em que a democracia interna convive naturalmente com o imperialismo internacional. “Quem utiliza a violência contra os outros países não é democrático”, defende.

Hoje, segundo ele, a democracia é definida mais por um método que “define o todo pela parte”: direito de ser eleito, direito a voto, acesso a fontes diversas de informação, condição de exercer o poder, etc. “Democracia não é só para governar, mas para atacar a desigualdade”. A igualdade viria justamente da prática do co-governo institucional, em formas organizativas com base na pluralidade.

Tapia propõe uma relação de intergovernabilidade baseado na condição de igualdade com outros governos que se autogovernam para caracterizar a democracia, em substituição a qualquer outra relação de viés autoritário. Para ele, órgãos como a Organização das Nações Unidas (ONU) e Organização dos Estados Americanos (OEA) são formas de intergovernabilidade que reforçam a relação de dominação entre os povos.

Democracia e capitalismo
“O capitalismo é inexoravelmente antidemocrático”, avaliou Atilio Boron, secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso). O verdadeiro apartheid social quer resulta do capitalismo está esvaziando a democracia, que nada mais é que um reflexo histórico do estágio de pilhagem em que vivemos. “Como nossos povos podem desfrutar da liberdade da ordem democrática se muitas vezes não tem sequer dinheiro para pagar o transporte para procurar trabalho”. Ele defende transformações profundas para transformas as “plutocracias e oligarquias” continuam a vigorar.

Para sustentar sua tese, Boron citou pesquisa com líderes políticos (autoridades em postos estratégicos) que revelou que 80% deles apontam os grandes empresários e o setor financeiro como os verdadeiros donos do poder. Em segundo lugar na escala de preponderância em decisões, vieram os meios de comunicação.

A reinvenção da democracia, para a historiadora Virgínia Fontes, da Universidade Federal Fluminense (UFF), também está vinculada com a reprodução do capital. Ela desenvolve uma linha de pesquisa que questiona a noção de fim do trabalho, sustenta a efetividade do Estado (para o funcionamento do esquema) e identifica o imperialismo não apenas na relação entre os países, mas também está nas relações classistas internas. “Não tem lado de fora na exploração capitalista”, argumenta. O processo de independência e formação dos Estados nacionais definiu uma forma de representação política “colonial-nativista”, salientou Virgínia durante o mesmo seminário. O sufrágio universal, como pontuara o historiador Eric Hobsbawn, também domesticou a capacidade subversiva e forjou cidadãos do mundo (livres de amarras, valores e identidades). Essas novas formas organizativas cristalizaram a relação subalterna sem que seja necessário que o explorado esteja no mesmo espaço do explorador. O Estado assumiu o papel de garantidor internacional dos direitos do capitalismo neoliberal ao sustentar mecanismos de filantropia/coerção e descartar a inclusão por meio do trabalho, principal forma de igualdade e democratização.

Marcadores:

ESPECIAL - Conferência da Clacso - 1

Emancipação requer união entre demandas étnicas e de classe
por Maurício Hashizume - Agência Carta Maior

RIO DE JANEIRO – Por trás da tragédia social concreta e diária do modelo neoliberal – que consome vidas tanto nas violentas ruas das metrópoles como nos rincões rurais e nega direitos humanos básicos a seres humanos - existe uma batalha ideológica fundamental que vem sendo travada entre intelectuais da América Latina e do Caribe. Levantes populares em diversos países – México, Bolívia, Equador, Venezuela, Argentina, entre outros – despertaram a atenção de estudiosos para uma questão complexa e fundamental que ocupa um espaço cada vez mais privilegiado nas discussões continentais. A relação entre a emergência da afirmação das identidades dos povos originários com as demandas econômicas, sociais e políticas do conjunto das populações mereceu destaque durante a IV Conferência Latino-Americana e Caribenha de Ciências Sociais, organizada pelo Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) na capital fluminense.

O caso do Equador pode servir de termômetro para aferir o grau de complexidade do tema. A pesquisadora Ana Maria Larrea, do Instituo de Estudos Equatorianos (IEE), apresentou algumas os dilemas da construção de um projeto político que possa conjugar a questão étnica com o recorte de classe social. Administrações locais do Pachakutik - a representação política dos movimentos indígenas equatorianos - não conseguiram efetivar a interculturalidade na prática e as estruturas do Estado não foram transformadas, pontuou Ana Maria durante o painel “Neoliberalimo e conflito na América Latina: os movimentos sociais e os desafios emancipatórios”, ocorrido nesta segunda-feira (21). A experiência do Equador mostra como permanece em aberto a definição da articulação necessária para combinar a questão estrutural com o componente cultural.

O governo de Evo Morales, do Movimento Al Socialismo (MAS) na Bolívia não é exclusivamente indígena, mas de superação da agenda colonial, assevera o boliviano Carlos Vacaflores, da Comunidade de Estudos Jaina-Tarija. O país, segundo ele, vive dividido entre essa e outra agenda – a da elite tradicional boliviana – que carrega agora a bandeira das autonomias regionais.

Para Edgardo Lander, professor de ciência política da Universidade Central da Venezuela (UCV) , o contexto atual de mercantilização e de guerra permanente – que destrói diretamente as condições materiais de sobrevivência humana - não permite desligar a questão da autonomia dos povos com a disputa pelo poder. Ele chama atenção também para a heterogeneidade dos movimentos sociais latino-americanos, com formas organizativas completamente diferentes.

A continuidade do “capitalismo dependente” (definição do falecido sociólogo Florestan Fernandes) na América Latina e Caribe, de acordo com Roberto Leher, do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), está assentada em três grandes eixos: a ofensiva ideológica pelos meios de comunicação; a gestão da pobreza e o controle social dos movimentos sociais. Ele defende a articulação de um “síntese convocatória superior” às já existentes no Brasil que possa unir as bases dos movimentos sociais na luta pela emancipação.

Na opinião de Ana Ester Ceceña, da Universidade Autônoma do México (Unam), é necessário que, antes de mais nada, o próprio neoliberalismo seja desvendado. Na visão dela, trata-se de uma estratégia – certas modalidades que reorganizam o sistema para reforçar a hegemonia dos EUA – de reprodução do capitalismo. “Não é nem uma nova fase”, adiciona. No entanto, a identificação dos problemas e os desafios da emancipação são muito variados. Dentro da dimensão econômica, poder-se-ia dizer que as corporações transnacionais são o principal problema. De outro ponto de vista, o poderio militar também pode ser considerado o problema. “Ambos fazem parte do mesmo núcleo. São diferentes formas de manifestação para controlar a população mundial. Por isso, é preciso enfrentar a batalha do pensamento, das concepções”.

“A repetição da história do capitalismo não nos fará sair do capitalismo”, defende Ceceña. Para ela, é preciso recuperar outras histórias e processos distintos próprios de organização política. Por isso, para pensar a relação entre movimentos sociais e a política institucional, ela indica três canais: pensar o mundo de um modo diferente, criar novas maneiras de fazer política e desinstitucionalizar o poder.

-----

mais em: http://agenciacartamaior.uol.com.br

Marcadores:

23 agosto 2006

OmbudsPE: Sitio de Monitoramento da Imprensa Pernambucana - www.cclf.org.br

MST
Os fatos não bastam


Para se entender todas as questões que envolvem o assassinato dos dois dirigentes sem-terra em Moreno e a posterior prisão do coordenador Jaime Amorim sob uma arbitrária acusação, é preciso que algumas perguntas sejam respondidas. Relatar os fatos, é importante, mas não basta .É preciso que se questione o que está por trás deles.

A coluna do JC nas Ruas, do Jornal do Commercio, é um exemplo disso. A jornalista pergunta o que se poderia ter questionado às fontes do TJ “por que uma determinação expedida no dia 6 de julho só agora foi cumprida?”. O JC continua trazendo para a opinião pública o máximo de informações distribuída em uma matéria principal, quatro vinculadas e uma entrevista com Jaime Amorim.

O Diário de Pernambuco faz um simples relato dos fatos, sem qualquer aprofundamento. Quando fala sobre o enterro dos militantes assassinados, ainda sugere: “não houve registro de incidentes”. Ora, é como se estivessem esperando qualquer tipo de confusão no momento. Lamentável!

A Folha de Pernambuco perdeu o foco da notícia. Traz uma matéria com Murilo Araújo. O empresário-político, de acordo com os acampados, era quem orientava os suspeitos de terem praticado o duplo assassinato. Era quem os aconselhava dividir o assentamento em grupos de sem-teto e de sem-terra, visando à uma possível indenização ofertada pela Companhia Pernambucana de Gás (Copergás).

Poderia ter aproveitado para questionar o que nenhum jornal questionou. Como por exemplo, quem é esse dono da rádio Pernambuco FM? Que liderança política ele tem em Bonança? É ligado a algum partido? Qual é a sua relação com a Copergás? Ele iria ganhar por isso? Como as questões econômicas interferem em pagamentos de infiltrados em movimentos? O que o DER tem a ver com essa história?

Em todas as matérias há um desencontro na informação sobre quem são os assassinos dos integrantes do MST. A direção estadual do MST – Pernambuco divulgou uma nota hoje em que explica que “os dois dirigentes estaduais não foram assassinados por outros companheiros, mas sim por pessoas infiltradas no acampamento com o intuito de desmobilizar os agricultores Sem Terra e desmoralizar o Movimento.” A carta está, na íntegra no site do CCLF.

É importante que se explicite também que a manifestação em que Jaime Amorim se encontrava, em novembro do ano passado, em frente ao Consulado Americano (motivo alegado para sua prisão) não foi organizada pelo MST, mas por vários movimentos sociais da cidade do Recife. Naquele mesmo dia, diversos protestos semelhantes aconteciam em todo o Brasil.

As questões políticas (eleitorais ou não) que estão por trás da prisão de Jaime devem ser apuradas, senão pelas autoridades competentes, ao menos pelos veículos de comunicação que se definem como independentes.

Com tantas nuances da “verdade” por aí, é fundamental a ousadia e a coragem de jornalistas para que possam esclarecer à opinião pública o que realmente está acontecendo, seja no caso dos militantes assassinatos ou no do ativista preso.

Retirado de: http://www.ombudspe.org.br/ombudspe.php

OmbudsMan > é um profissional contratado por um órgão, instituição ou empresa que tem a função de receber críticas, sugestões, reclamações e deve agir em defesa imparcial da comunidade.
A palavra passou às línguas modernas através do sueco (ombudsman significa representante). De fato, em 1809, surgiram na Suécia normas legais que criaram o cargo de agente parlamentar de justiça para limitar os poderes do rei.
Atualmente, o termo é usado tanto no âmbito privado como público para designar um elo imparcial entre uma instituição e sua comunidade de usuários.

Marcadores:

22 agosto 2006

Salva-vidas de chumbo

Salva-vidas de chumbo
16/08/2006
Por Eduardo Galeano*

Pelo que diz a voz de comando, nossos países devem acreditar na liberdade do comércio (embora ela não exista), honrar os compromissos (embora eles sejam desonrosos), atrair investimentos (embora eles sejam indignos) e ingressar no cenário internacional (embora pela porta dos fundos).

Ingressar no cenário internacional: o cenário internacional é o mercado. O mercado mundial, onde compram-se países. Nada de novo. A América Latina nasceu para obedecê-lo, quando o mercado mundial nem era chamado assim, e de um jeito ou de outro continuamos atados ao dever de obediência.

Esta triste rotina dos séculos começou com o ouro e a prata, e continuou com o açúcar, o tabaco, o guano, o salitre, o cobre, o estanho, a borracha, o cacau, a banana, o café, o petróleo... O que esses esplendores nos deixaram? Nos deixaram sem herança nem bonança. Jardins transformados em desertos, campos abandonados, montanhas esburacadas, águas apodrecidas, longas caravanas de infelizes condenados à morte antecipada, palácios vazios onde perambulam fantasmas...

Agora, chegou a vez da soja transgênica e da celulose. E outra vez repete-se a história das glórias fugazes, que ao som de seus clarins nos anunciam longas tristezas.
***
Será que o passado ficou mudo?

Nós nos negamos a escutar as vozes que nos alertam: os sonhos do mercado mundial são os pesadelos dos países que se submetem aos seus caprichos. Continuamos aplaudindo o seqüestro dos bens naturais que Deus, ou o Diabo, nos deu, e assim trabalhamos pela nossa própria perdição e contribuímos para o extermínio da pouca natureza que nos resta neste mundo.Argentina, Brasil e outros países latino-americanos estão vivendo a febre da soja transgênica. Preços tentadores, rendimentos multiplicados.

A Argentina é, e já faz tempo, o segundo maior produtor mundial de transgênicos, depois dos Estados Unidos. No Brasil, o governo de Lula executou uma dessas piruetas que pouco favor fazem à democracia, e disse sim à soja transgênica, embora seu partido tenha dito não durante toda a campanha eleitoral.

Isso é pão hoje e fome amanhã, como denunciam alguns sindicatos rurais e organizações ecologistas. Mas já sabemos que os peões ignorantes se negam a entender as vantagens do pasto de plástico e da vaca a motor, e que os ecologistas são uns estraga-prazeres que não dizem coisa-com-coisa.

***
Os advogados dos transgênicos afirmam que não está provado que prejudiquem a saúde humana. Em todo caso, também não está provado que não a prejudiquem. E já que são assim tão inofensivos, por que os fabricantes de soja transgênica se negam a esclarecer, nas embalagens, que vendem o que vendem? A etiqueta de soja transgênica não seria sua melhor publicidade?

Acontece que existem evidências de que estas invenções do Doutor Frankenstein fazem mal à saúde do solo e reduzem a soberania nacional. Exportamos soja ou exportamos solo? Estamos ou não estamos presos nas gaiolas da Monsanto e de outras grandes empresas de cujas sementes, herbicidas e pesticidas passamos a depender?

Terras que produziam de tudo para o mercado local agora se consagram a um único produto para a demanda estrangeira. Nós nos desenvolvemos para fora e nos esquecemos de dentro. O mono-cultivo é uma prisão, sempre foi, e agora, com os transgênicos, é muito mais. A diversidade, por sua vez, liberta. A independência se reduz ao hino e à bandeira, se a soberania alimentar não é assentada. A autodeterminação começa pela boca. Só a diversidade produtiva pode nos defender das súbitas despencadas de preços que são costume, mortífero costume, do mercado mundial.

As imensas extensões destinadas à soja transgênica estão arrasando os bosques nativos e expulsando os camponeses pobres. Poucos braços ocupam essas explorações altamente mecanizadas, que ao mesmo tempo exterminam as plantações pequenas e as hortas familiares com os venenos que fumigam. Multiplica-se o êxodo rural às grandes cidades, onde se supõe que os expulsos vão consumir, se tiverem sorte, o que antes produziam. É a agrária reforma: a reforma agrária pelo avesso.
***
A celulose também está na moda, em vários países.

Agora, o Uruguai está querendo se transformar num centro mundial de produção de celulose para abastecer de matéria prima barata as longínquas fábricas de papel.

Trata-se de monocultivos para a exportação, na mais pura tradição colonial: imensas plantações artificiais que dizem ser bosques e se convertem em celulose num processo industrial que arroja detritos químicos nos rios e torna o ar irrespirável.

No Uruguai, começaram por duas fábricas enormes, uma das quais já está a meio construir. Depois surgiu outro projeto, e já se fala de outro, e outro mais, enquanto mais e mais hectares estão sendo destinados à fabricação de eucaliptos em série. As grandes empresas internacionais nos descobriram no mapa do mundo, e caíram de súbito amor por este Uruguai onde não há tecnologia capaz de controlá-las, o estado outorga subsídios e evita impostos, os salários são raquíticos e as árvores brotam num piscar de olhos.

Tudo indica que nosso país, pequenino, não irá agüentar o asfixiante abraço desses grandalhões. Como costuma acontecer, as bênçãos da natureza se transformam em maldições da história. Nossos eucaliptos crescem dez vezes mais depressa que os da Finlândia, e isso se traduz assim: as plantações industriais serão dez vezes mais devastadoras. No ritmo de produção previsto, boa parte do território nacional está sendo espremida até a última gota de água. Os gigantes sedentos vão secar nosso solo e nosso subsolo.

Trágico paradoxo: este país foi o único lugar do mundo em que a propriedade da água foi submetida a plebiscito popular. Por esmagadora maioria, os uruguaios decidiram, em 2004, que a água seria propriedade pública. Não haverá maneira de evitar o seqüestro dessa vontade popular?
***
A celulose, é preciso reconhecer, transformou-se em algo assim como uma causa patriótica, e a defesa da natureza não desperta entusiasmo. Pior: em nosso país, algumas palavras que não eram palavrões, como ecologista e ambientalista, estão se transformando em insultos que crucificam os inimigos do progresso e os sabotadores do trabalho.

Celebra-se a desgraça como se fosse boa notícia. Mais vale morrer de contaminação do que morrer de fome: muitos desempregados acreditam que não existe outro remédio além de escolher entre duas calamidades, e os mercadores de ilusões desembarcam oferecendo milhares e milhares de empregos. Acontece que uma coisa é a publicidade, e outra é a realidade. O MST, movimento dos camponeses sem terra, divulgou dados eloqüentes, e que não valem apenas para o Brasil: a celulose gera um emprego a cada 185 hectares, e a agricultura familiar cria cinco empregos a cada dez hectares.

As empresas prometem o melhor. Trabalho a rodo, investimentos milionários, controles rígidos, ar puro, água limpa, terra intacta. E eu me pergunto: já que é assim, por que não instalam essas maravilhas em Punta del Este, para melhorar a qualidade de vida e estimular o turismo em nosso balneário principal?

Publicado em www.mst.org.br
*Eduardo Galeano nasceu no Uruguai. É jornalista e escritor. Escreveu, entre outros, O Século do Vento, As Caras e as Máscaras, Os Nascimentos, O Futebol ao sol e à sombra, O Livro dos Abraços, Dias e noites de amor e de guerra e o célebre As Veias Abertas.

Marcadores:

21 agosto 2006

Mafalda - "Anda com uma cara, o infeliz..."

Marcadores:

20 agosto 2006

Eleições 2006

Falar de saúde, educação e segurança não é fazer programa de governo
Gilberto Maringoni

Sempre que começa uma campanha eleitoral, a imprensa, as páginas de notícias da internet e o horário eleitoral arvoram-se em procurar detalhar o “programa” dos diversos candidatos. Por programa entende-se, nestes casos, o que cada um fará nas áreas mais sensíveis da administração pública, como saúde, educação, transportes, segurança etc. etc. Todos têm propostas para tudo.

Funciona mais ou menos assim. Na saúde teremos policlínicas integradas com pronto-socorro vinculado à pediatria computadorizada, que alimentará um banco de dados centralizado com o objetivo de cruzar os diagnósticos de toda a cidade, fornecendo assim toda a informação necessária ao tratamento preventivo de várias enfermidades. Ou ainda unidades móveis de atendimento, para recuperar o conceito do médico de família, com atenção personalizada em qualquer região. Na educação, a progressão descontinuada, somada aos modernos métodos de avaliação e pontuação, aliados à cursos de informática e gerenciamento de merenda facultarão a cada estudante a bolsa-escola, a bolsa creche, a bolsa-família e a bolsa-bolsa. Para a área de transportes, nossa proposta é realmente revolucionária. Vamos colocar os carros circulando nos túneis do metrô, onde não há trânsito e vamos colocar o metrô – que sabidamente alivia o tráfego – nas ruas, para reduzir o número de veículos em circulação. Etc. etc. etc....

Parece que isso tudo é programa, mas não é. Apresenta-se ao eleitor um rosário de pequenas idéias engenhosas e o cidadão acha que estão ali, na sua frente, discutindo projetos para sua cidade e seu país. Não estão.

O essencial é invisível aos ouvidos
A melhor maneira de se evitar falar do essencial não é ficar quieto. É falar de tudo o que é secundário, sem estabelecer ligações e conexões entre as coisas. Tudo é verdade, policlínicas são legais, metrô desafoga trânsito e escolas modernas apresentam vantagens. Mas são idéias parciais, meias-idéias, que parecem viáveis. Basta estilhaçar as informações e apresentá-las como se não fizessem parte do mesmo planeta ou cidade, para desorientar qualquer um. Não há interesses a serem contrariados ou favorecidos. Como são sugestões soltas, volta e meia aparece um candidato alegando ter sido plagiado por outro. O que se apresenta como programa político não é programa e muito menos é algo político. É aplicar a marquetagem com o propósito de entreter o público, enquanto os negócios seguem em frente.

O debate sobre segurança pública é, de todos, talvez o que mais se ressinta dos males da fragmentação. O país vive uma situação de caos na área e os programas das candidaturas, com poucas exceções, não passam da cantilena de “leis mais duras”, “mais energia”, “mais presídios”, “rota na rua” e lorotas do tipo. Não se faz uma ligação com o fato do país não crescer há 25 anos, com uma das piores distribuições de renda e de riqueza do mundo e incapaz de gerar empregos suficientes para absorver a juventude que ano a ano chega ao mercado de trabalho.

Haverá dinheiro para cumprir tais e quais promessas? Mantida a atual lógica de financiamento do Estado, é claro que não. Com a ditadura das sucessivas equipes econômicas sobre o orçamento público, não há como criar novos programas ou realizar ações prometidas em campanha.

O irônico é que o financiamento é justamente o ponto cego das campanhas. Para responder à pergunta “de onde virá o dinheiro?”, é preciso discutir economia e política econômica. Sobre isso, a maioria dos candidatos silencia (justiça seja feita, o segundo programa eleitoral de televisão da senadora Heloísa Helena foi todo dedicado ao tema).De nada adianta prometer, se 40% do orçamento público é anualmente seqüestrado para a consolidação do superávit primário, que garante a rentabilidade dos títulos da dívida pública para os especuladores de pequeno e de grande calado. Os caminhos e descaminhos dessa enormidade de dinheiro que, somado aos pagamentos de juros e serviços da dívida financeira, chega a R$ 160 bilhões ao ano, são determinados pela equipe econômica que a todos governa.

O ministério de tudo
Quem manda e desmanda no país, quem faz e desfaz políticas sociais e de investimento são os senhores do Ministério da Fazenda e do Banco Central. Este time é responsável não apenas pelas questões diretamente afeitas à sua alçada – moeda, câmbio, juros e afins – mas por quanto de reforma agrária poderá ser feita, quanto de remédios será possível comprar para os hospitais públicos e por aí vai. Quem faz política social no Brasil é a equipe econômica.

Desde que as tais equipes econômicas ganharam proeminência na vida brasileira, a partir de 1990, estamos submetidos a uma espécie de ditadura. Com o auxílio da maioria da imprensa, impediu-se o debate de alternativas, reforçado pelo fato de que os quatro presidentes que chegaram ao Planalto a partir de então mantiveram a mesma orientação. Aparentemente vive-se um clima de total liberdade de expressão no país, em que a opinião contrária é sempre desqualificada ou encontra pouco espaço para se manifestar. “Fracassomaníacos”, “nhénhénhé”, “não há alternativas” são as expressões cunhadas nesses tempos. Faz-se de tudo para que a economia não seja sequer parte dos debates desse período, quando deveria ser o centro.

O Brasil saiu de um período de 21 anos de ditadura política, em 1985, entre outras coisas porque a economia rateava. O país, quebrado em 1982, estava em recessão, a inflação explodira e o povo estava indômito contra as más condições de vida. Passamos cinco anos – de 1985 a 1990, que coincidiram com o governo José Sarney – de intensa disputa de rumos.

Governo em disputa mesmo
Aliás, o governo Sarney foi o governo mais disputado dos últimos vinte anos. Não havia um roteiro preestabelecido. Tivemos ali a mais progressista e preparada equipe econômica do período, constituída por Dílson Funaro, João Sayad, Luiz Gonzaga Belluzzo, João Manoel Cardoso de Mello e Paulo Nogueira Batista Jr. Nunca mais o país viu algo semelhante. De Marcílio a Mantega, impera o que os argentinos chamam de “pátria financeira”.

A orientação liderada por Funaro durou cerca de um ano e meio e tinha como norte o documento “Esperança e mudança”, o programa do PMDB de 1985, talvez o melhor texto partidário pós-ditadura. Francamente anti-liberal, foi também uma espécie de baliza para as teses de democratização, soberania e reorganização do Estado na constituinte de 1988. O PMDB não é mais o mesmo, mas estas são páginas que valeria a pena recuperar. Foi possivelmente o último projeto de país articulado a partir de um ponto de vista progressista e democrático que tivemos. Encarava o Brasil como uma totalidade e não a partir de demandas setoriais. Não buscava particularizar pretensas idéias miúdas desconectadas do foco econômico.

A ditadura econômica subverteu essa lógica. Segmentar e tentar fazer com que o debate se dê em raias estreitas é a melhor maneira de não se voltar para o centro articulador de tudo. Por isso o modelo econômico, que freia o desenvolvimento, corta investimentos e impede o país de crescer, enquanto os lucros bancários atingem patamares pornográficos, tornou-se um não-tema nesta campanha eleitoral. Tudo é tudo e nada é nada.

Gilberto Maringoni, jornalista e cartunista da Carta Maior, é doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo).

Marcadores:

06 agosto 2006

Feliz idade e pronta recuperação, Comandante.

Por Frei Beto

Houvesse uma fábrica de produtos lúdicos destinados ao mercado político, talvez “Onde está Wally?” ganhasse a versão “Onde está a esquerda?”

Uma parcela da esquerda sente-se vexada porque não é tão ética quanto propala; outra, porque o socialismo faliu, exceto em Cuba. Na Coréia do Norte predomina um regime totalitário e, na China, o capitalismo de Estado.

As carpideiras da falência do socialismo não se perguntam por suas causas nem denunciam o fracasso do capitalismo para os 2/3 da humanidade que, segundo a ONU, vivem abaixo da linha da pobreza. Assim, abraçam o neoliberalismo sem culpa. E o adornam com o eufemismo de “democracia”, embora ele acentue a desigualdade mundial e negue valores e direitos humanos cultuando a idolatria do dinheiro e das armas.

O que é ser de esquerda? Todos os conceitos acadêmicos – ideológicos, partidários e doutrinários – são palavras ocas frente à definição de que ser de esquerda é defender o direito dos pobres, ainda que aparentemente eles não tenham razão. Por isso causa arrepio ver quem se diz de esquerda aliar-se à direita.

Fidel é um homem de esquerda. Não fez, entre 1956 e 1959, uma revolução para implantar o socialismo. Motivou-o livrar Cuba da ditadura de Batista, resgatar a independência do país e libertar o povo da miséria. Em visita aos EUA logo após a tomada do poder, foi ovacionado nas avenidas de Nova York.

A elite cubana resistiu a ceder os anéis para que toda a população tivesse dedos. Apoiada pela Casa Branca, instaurou o terror, empenhada em deter as reformas agrária e urbana e a campanha nacional de alfabetização. Kennedy, festejado como baluarte da democracia, enviou 10 mil mercenários para invadir Cuba pela Baía dos Porcos, em 1961. Foram derrotados. E a Revolução, para se defender, não teve alternativa senão aliar-se à União Soviética.

Cuba é o único país da América Latina que logrou universalizar a justiça social. Toda a população de 11 milhões de habitantes goza dos direitos de acesso gratuito à saúde e à educação, o que mereceu elogios do papa João Paulo II em sua viagem à Ilha, em 1998.

Seria o paraíso? Para quem vive na miséria em nossos países – e são tantos – a cidadania dos cubanos é invejável. Para quem é classe média, Cuba é o purgatório; para quem é rico, o inferno. Só suporta viver na Ilha quem tem consciência solidária e sabe pensar em si pela ótica dos direitos coletivos. Ou alguém conhece um cubano que deu as costas à Revolução para, em outra parte do mundo, defender os pobres?

No trajeto do aeroporto de Havana ao centro da cidade há um outdoor com o retrato de uma criança sorrindo e a frase: “Esta noite 200 milhões de crianças dormirão nas ruas do mundo. Nenhuma delas é cubana.” Algum outro país do Continente merece semelhante cartaz à porta de entrada?

A simples menção da palavra Cuba provoca arrepios nos espíritos reacionários. Cobram da Ilha democracia, como se isso que predomina em nossos países – corrupção, nepotismo, malversação – fosse modelo de alguma coisa. Ora, por que não exigem que, primeiro, o governo dos EUA deixe de profanar o direito internacional e suspenda o bloqueio e feche seu campo de concentração em Guantánamo?

Protesta-se contra os fuzilamentos da Revolução, e faço coro, pois sou contrário à pena de morte. Mas cadê os protestos contra a pena de morte nos EUA e o fuzilamento sumário praticado no Brasil por policiais militares?

Cuba é, hoje, o país com maior número de médicos e bailarinos de balé clássico por habitante. E desenvolve um programa para atender, nos próximos 10 anos, 6 milhões de latino-americanos com deficiência visual – gratuitamente.

Fidel está recolhido ao hospital. O que acontecerá quando morrer, ele que sobrevive a uma dezena de presidentes dos EUA e a 47 anos de esforços terroristas da CIA para eliminá-lo? O bom humor dos cubanos tem a resposta na ponta da língua: “Como pessoas civilizadas, primeiro trataremos de enterrar o Comandante.” Mas será que o socialismo descerá à tumba com o seu caixão?

Tudo indica que Cuba prepara-se para o período pós-Fidel. O que não significa que, como esperam os cubanos de Miami, isso ocorrerá em breve. Em novembro, na Universidade de Havana, o líder revolucionário advertiu que a Revolução pode ser vítima de seus próprios erros e deixou no ar uma indagação: “Quando os veteranos desaparecerem, o que fazer e como fazer?”

Às vésperas de seu aniversário, a 13 de agosto, Fidel já começa a expressar seu testamento politico. A maioria dos membros do Birô Político do Partido Comunista tem de 40 a 50 anos, e cada vez mais jovens são chamados a ocupar funções estratégicas. Como 70% da população nasceu no período revolucionário, não há indícios de anseio popular pela volta ao capitalismo. Cuba não quer como futuro o presente de tantas nações latino-americanas, onde a opulência convive com o narcotráfico, a miséria, o desemprego e o sucateamento da saúde e da educação.

Feliz idade e pronta recuperação, Comandante!!!

Marcadores: